Vergonha Nacional

Os Índios não são Incapazes
 
Texto do Instituto Socioambiental (ISA) endereçado às
comunidades indígenas
 
A atual presença da tutela no Estatuto do Índio é resultado da
incapacidade dos brancos de compreender que os índios não são
incapazes, mas culturalmente diferenciados
 
 Em 1916, os brancos fizeram uma lei chamada Código Civil (Lei 3.071/16)
afirmando que "todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil". No
entanto, esta lei considera que algumas pessoas não têm a mesma capacidade de
exercer seus direitos. O art. 5º desta lei afirma que "são absolutamente incapazes
de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos, os loucos de
todo o gênero, os surdos-mudos, que não puderem exprimir sua vontade. Esta lei
afirma também que são relativamente incapazes para certos atos "os maiores de
16 anos e menores de 21, os pródigos (pessoas que assumem comportamentos
irresponsáveis) e os silvícolas", ou seja, os índios. E, como considera que os índios
não são totalmente capazes de exercerem seus direitos, esta lei determina que eles
sejam "tutelados" até que estejam integrados à "civilização do país".
 
Portanto, os índios são tutelados porque, pelas leis brasileiras, são equiparados a
pessoas irresponsáveis ou que não têm condições de assumir integralmente suas
responsabilidades.
 
Os brancos que fizeram esta lei consideraram os índios como incapazes por que
eles não compreenderam que os índios são, na verdade, diferentes culturalmente.
 
Ou seja, os índios são plenamente responsáveis de acordo com os seus próprios
padrões. Mas na época em que se escreveu o Código Civil, os brancos acreditavam
também que os índios seriam extintos e portanto, não precisariam de direitos para
toda a vida. Na verdade, imaginava-se que os índios eram seres primitivos que
iriam se educar, adquirir a cultura dos brancos até integrarem-se totalmente à
sociedade brasileira, deixando portanto de ser índios.
 
Quando os brancos escreveram o Estatuto do Índio, quase 30 anos atrás, pegaram
esta mesma definição presente no Código Civil. Fizeram isso por que todo o esforço
do governo era para que os índios se integrassem à sociedade dos brancos,
deixassem suas terras, sua cultura, seu modo de ser, para trabalhar e viver nas
cidades dos brancos. Por isso, o Estatuto do Índio foi pensado de modo a conceder
direitos apenas por algum tempo aos índios, já que eles, um dia, deixariam de ser
índios e perderiam suas tradições, cultura e o direito às suas terras.
 
Em algumas oportunidades, o Estatuto do Índio de 1973 foi útil para que
indigenistas sérios pudessem defender os direitos e as terras dos índios, como
ocorreu com a criação do Parque do Xingu. Mas também foi usado contra os índios
que, por serem tutelados, não puderam defender estes direitos e ficaram na
dependência da FUNAI, que muitas vezes defendeu mais os interesses do governo
que dos índios. Só na primeira metade deste século, 83 etnias foram extintas em
conseqüência de processos desastrosos de contato promovidos pelo Estado
brasileiro, conforme demonstrou o antropólogo Darcy Ribeiro.
 
Nos últimos 30 anos, entretanto, a vida dos povos indígenas mudou. As relações
das comunidades indígenas e de suas lideranças com o mundo dos brancos se
tornou muito mais freqüente. Os índios passaram a compreender muito melhor
como vivem os brancos e quais são suas leis. Os índios também criaram
organizações e passaram a estar presentes em reuniões e eventos nacionais e
internacionais para defender seus direitos. Hoje, muitas comunidades indígenas
vêem televisão, ouvem rádio e acompanham o mundo que gira fora de suas
aldeias. Muitos índios ocupam cargos importantes como funcionários da FUNAI.
Talvez possamos afirmar que as mudanças nas relações entre índios e brancos
nestes últimos 30 anos foram mais profundas que as dos 470 anos anteriores.
 
O Atual Estatuto é uma Lei Velha
 
Ao aprovar um capítulo para os índios, a Constituição de 1988 estabeleceu que a
política de transformar os índios em brancos não poderia continuar, pois os índios
deveriam existir para sempre, vivendo segundo seus usos, costumes, tradições,
suas formas de vida e de organização. Esta mudança trazida pela Constituição fez
com que o Estatuto do Índio virasse uma lei velha, obrigando o governo a mudar
sua política para índios.
 
Por isso, hoje os povos indígenas precisam de uma nova lei, de um novo Estatuto,
que exija do governo a proteção e o apoio de que os índios precisam, para que
possam tomar suas próprias decisões sem ter que pedir autorização para a FUNAI.
 
Este novo Estatuto deve garantir aos povos indígenas sua sobrevivência como
sociedades diferenciadas, incumbindo o governo de prestar serviços básicos de
educação e saúde e a apoiar os projetos culturais, econômicos e ambientais dos
índios.
 
Com todas estas mudanças, hoje os povos indígenas não precisam mais de uma lei
que os obriguem a ser tutelados, ou seja, tratados como incapazes, como está
escrito no Estatuto do Índio em vigor. A existência da tutela atrapalha a livre
expressão política dos índios, a administração direta dos seus territórios, o seu
acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho, às linhas oficiais de crédito
etc. Além de reduzir a capacidade civil dos índios, a tutela é um obstáculo à
autogestão das terras e dos projetos de futuro dos povos indígenas.
 
Por que entendemos que o Estatuto do Índio é uma lei velha, que tem atrapalhado
muito a vida dos índios, defendemos a criação de uma nova lei, o Estatuto das
Sociedades Indígenas. Um novo Estatuto que garanta a proteção de que os índios e
os seus direitos precisam, sem ter que chamá-los de incapazes, mas apenas os
reconhecendo como povos diferentes.
 
Hoje, existem duas propostas de lei que procuram garantir proteção e direitos aos
índios sem considerá-los incapazes. A primeira é o Projeto de Lei 2.057/91,
conhecido como o Substitutivo do Deputado Luciano Pizzatto, que já foi aprovado
por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados. A segunda é a proposta
alternativa que o governo apresentou recentemente aos índios. Esta proposta, na
verdade, traz sugestões do governo para alterar o Projeto do Deputado Pizzatto.
 
Todas as duas propostas mantém a obrigação do Estado de dar assistência aos
índios nas áreas de saúde e educação, estabelecendo uma série de novos direitos,
que não existem no atual Estatuto do Índio. As propostas garantem direito autoral,
proteção ao conhecimento tradicional, representação segundo seus usos e
costumes, direito de participação em todas as instâncias oficiais de discussão da
questão indígena, proteção aos recursos naturais e outras coisas mais. Elas
também asseguram que quaisquer atos ou negócios que prejudiquem os direitos
das comunidades indígenas não têm validade, dando ainda às comunidades o poder
de ir à Justiça para pedir indenização pelos danos que possam ter sofrido. Na
questão dos crimes, as duas propostas reconhecem novos crimes cometidos contra
os índios, como, por exemplo, o uso indevido dos seus conhecimentos tradicionais.
Quanto aos crimes praticados pelos próprios índios, as duas propostas mantém o
tratamento que é dado pelo Estatuto do Índio atual; isto é, um índio só pode ser
condenado se ficar provado que tinha consciência e entendimento do ato que
praticou.
 
As duas propostas fortalecem as competências do órgão indigenista, definindo-as
claramente em relação a cada assunto a ser tratado pela futura lei. A proposta do
governo regulamenta o exercício do poder de polícia da FUNAI para a proteção das
terras e dos direitos dos índios, que nunca havia sido regulamentado desde a sua
criação, o que deixou o órgão na dependência do IBAMA e da Polícia Federal para o
cumprimento da sua missão e sem dispor de uma fonte própria de recursos, sem
poder multar os invasores das terras indígenas, como poderá fazer com a
aprovação da nova lei.
Como achamos que o Estatuto do Índio atual é uma lei ultrapassada, que trata os
índios de forma indevida, entendemos que as duas propostas mencionadas
merecem ser discutidas e analisadas.
 
(Instituto Socioambiental - Brasília, maio de 2000)

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